quarta-feira, 12 de maio de 2010

Hermenêutica Jurídica

Hermenêutica

A nova hermenêutica surgiu no seio da teologia protestante européia, mas há algum tempo se nota a sua incorporação, além de na teologia também à Filosofia e à interpretação literária. Isso foi possível graças à queda no isolamento da crítica literária americana e ao lançamento da obra “Validity in Interpretation” de Hirsch.
O problema da conceituação do termo se relaciona à sua histórica ligação com a teologia, mas, na atual configuração, para sanar este problema, se fez necessário afastar a palavra do contexto teológico e inseri-la a um contexto mais geral que permite clarear seu conceito perante todas as disciplinas a qual pode ser aplicada.
Na atual configuração a aplicação da hermenêutica na América e a Inglaterra seguem uma linha mais realista, ou seja, produzem uma interpretação tecnológica da obra literária tratando-a como objeto, no sentido mais científico do termo, retirando da sua análise percepções pessoais, intenções do autor, seu contexto sócio-histórico e etc. A interpretação é feita como um “exercício de dissecação” conceitual e assim pregada pelos professores; fato este que está provocando nos estudantes desinteresse pela aparente irrelevância do estudo da obra
O crítico moderno tenta derrubar este mecanicismo da interpretação e trazer novamente a paixão, além de defenderem a visualização do conteúdo, foco da análise, como “textos que falam, criados por seres humanos” que para serem compreendidos exigem o risco de explorar seu mundo pessoal e adentrar no “mundo vivo” da obra.
“ Compreender uma obra literária é um encontro histórico que apela para a experiência pessoal de quem está no mundo”
Para haver uma investigação deste mundo é preciso que haja uma distinção entre obra e objeto, corriqueiramente confundidos, que dificultam a aplicação dos meios adequados à sua investigação correta. Enquanto ao primeiro é adequadamente aplicável a hermenêutica que se aproxima da autenticidade quanto mais incorpora uma visão de avaliação geral dentro da própria interpretação, considerando a ubiqüidade da interpretação e a generalidade do uso da palavra; ao segundo se destina técnicas de explicação e o conjunto de artifícios para seu estudo.
Na verdade a interpretação é algo intrinsecamente ligado à vida animal e vai além do mundo lingüístico, o que não exclui a grande importância do mundo lingüístico na interpretação, pois, é a linguagem que molda a visão que o homem tem do seu mundo e dele próprio. No entanto, os princípios da hermenêutica extrapolam o mundo da linguagem e pode ser usado na interpretação de qualquer obra seja ela escrita, falada ou não, ou seja, se aplica também a pinturas, esculturas, etc.
A palavra hermenêutica é derivada do grego ‘hermeneuein’ ( interpretar) e ‘hermeneia’ ( interpretação) e aparece em vários escritos gregos antigos. Associada, e certamente dele derivada, à Hermes, o deus mensageiro-alado, (a quem também era atribuído, pelos gregos, a descoberta da escrita e da linguagem) que era símbolo da transformação da mensagem dos deuses em algo inteligível aos seres humanos, por isso hermenêutica, nos tempos atuais, ainda é compreendida como linguagem.
A ‘Hermeneuein’ ( interpretar) e ‘hermeneia’ (interpretação) possuem três orientações: 1) dizer; 2) explicar; e 3) traduzir que juntos são os elementos essenciais da interpretação.
A orientação “dizer” se relaciona com a função anunciadora de Hermes. O poder de dizer é reforçado pela “ performance” inerente a fala o que provoca uma compreensão mais clara da linguagem oral em comparação a linguagem escrita- na verdade toda leitura silenciosa de um texto literário é uma forma disfarçada de interpretação oral pelo poder que tem o último de se infiltrar no primeiro. A “performance” é dependente da compreensão que o leitor tem do texto ( que para ser autêntica, não deve ser copiada, mas sim fruto de uma tarefa filosófica e analítica ou mesmo fruto de uma pré-compreensão inerente ao homem). A interpretação oral dá vida a obra literária e facilita a critica literária a lembrar-se da intenção secreta do texto. A palavra abandona a sua prisão conceito-visual para libertar-se e tornar-se evento. A teologia e a interpretação literária devem reconverter a escrita em discurso, sugere o autor.
Na segunda orientação, “explicar”, o foco migra da dimensão expressiva para a dimensão explicativa a qual dá ênfase ao aspecto discursivo da compreensão, afinal, a palavra não se limita a ser dita mas também a ser explicada, clareada e racionalizada.
A interpretação chamada por Aristóteles de enunciação é entendida por ele como uma formulação de juízos com uma percepção do intelecto, da captação da essência. E tem haver com a verdade e a falsidade das coisas. A enunciação alcança a verdade de uma coisa e a incorpora como juízo. “O telos do processo[...] tornar compreensível o juízo”. Ela sai da órbita da mensagem para orbitar na operação do intelecto. Um acontecimento tem a sua significação reforçada ou dependente de um contexto histórico. É a relação coisa-pessoa ou coisa-história que estabelece o seu significado.
A performance, além de só ser possível diante de compreensão prévia ( parcial) do texto exige que o interprete se permita transportar-se para o interior do que o autor chama “ círculo mágico” presente no “ horizonte do seu significado” e tudo isso consiste no “círculo hermenêutico” do qual emerge, necessariamente, o sentido do texto.
Na terceira orientação, a “traduzir”, a figura do deus Hermes aparece como mediador de dois mundos diferentes, como tradutor das mensagens de um mundo para o outro, ou seja, na tradução da mensagem em determinada língua para torná-la inteligível para os que estranham a língua na qual foi emitida. O ato de traduzir não é o simples ato de relacionar sinônimos, mas de nos tornar mais conscientes do modo como as palavras na realidade moldam a nossa visão de mundo e da sua adequação a nossa compreensão, resumindo é uma tradução de ideias. Na contemporaneidade isso se revela um grande problema, pois o contexto histórico, ou seja , o tempo, se apresenta como grande dificultador de tornar visões de mundo antigas e inseridas em outros contextos histórico-culturais inteligíveis os indivíduos que os desconhecem na atualidade. Fazer do ato de traduzir um processo mecanizado retira da obra a sua natureza humanística, aquilo que agrega valor a sua significação, ou seja, a tradução mecanizada ocasiona a perda de sentido da obra subtraindo-lhe, assim, o seu valor. É para impedir isso que a função do professor de literatura é transformar o obscuro, o estranho em algo que “nos digam alguma coisa”.
Na modernidade foram determinados seis (6) definições para a hermenêutica que contemplam diferentes ângulos pelos quais podemos encará-la. A primeira, de significado mais antigo, é a hermenêutica como teoria da exegese bíblica. Ela surgiu ainda na antiguidade, apesar do termo datar do séc. XVII, com a necessidade de se interpretar correntemente as escrituras, ou seja, a teologia enquanto interprete histórica da mensagem bíblica já é hermenêutica. Ganhou mais popularidade a partir da obra de Danhaeur (1654) principalmente na Alemanha na qual foi preciso se criar um manual de interpretação que ajudasse os sacerdotes protestantes à exegese das Escrituras já que não podiam eles mais contar com a ajuda da Igreja Católica e, o que explica o uso do termo, historicamente relacionado à bíblia. A necessidade de se criar um manual que facilitasse a extração de textos não bíblicos fora, então, analogados a necessidade dos sacerdotes protestantes europeus, e assim expandiu-se o termo. Hoje a hermenêutica é aplicada seguindo um “ principio hermenêutico” que se propõe a revelar o significado oculto inicialmente proposto por um interesse, já que o autor afirma que verdades morais encontradas na bíblia, obra que ele usa como exemplo, encontra-se nela pois, foi-se moldado um principio interpretativo que as encontrasse, que pode ser baseado numa teorização explicita ou implícita revelada através da prática.
A segunda consiste na hermenêutica como metodologia filológica. Com o advento da filologia clássica e do desenvolvimento da racionalidade no séc. XVIII surge o método histórico-crítico na teologia, estendendo para as outras obras os métodos interpretativos aplicados na teologia e o uso da razão para interpretá-las. Segundo os interpretes bíblicos a obra foco da sua análise não revela nada que ele não pudesse ter reconhecido pelo próprio uso da razão, por exemplo, preceitos morais nela encontrados. J. S. Semler afirmava que o interprete deveria ser capaz de adaptar os textos conforme as diferentes circunstâncias, tornando assim, a tarefa do interprete histórica.
A interpretação bíblica proporcionou o desenvolvimento de técnicas de análise gramatical ( conjunto de regras filológicas) que foram responsáveis pela expansão do termo hermenêutica à toda espécie de interpretação fazendo com que hermenêutica bíblica se tornasse, de um termo geral, central, em uma classe, uma categoria, dentre outras, da interpretação o que também aconteceu com o seu objeto de estudo, a bíblia.
A terceira, a hermenêutica como ciência da compreensão lingüística, baseia-se em Schleiermacher e consiste na passagem do conceito de hermenêutica filológica para um conceito caracterizado pela sistematização coerente que descreve as condições de compreensão( da hermenêutica geral) que alcança a interpretação de todos os textos. É nessa ciência que a hermenêutica se volta para a compreensão dela mesma, marcando a emergência de uma hermenêutica não disciplinar.
A quarta definição, a hermenêutica como base metodológica para as “geistewissenschaften”, destaca Dilthey, um dos grandes filósofos do século passado e biógrafo de Schleiermacher, que viu na hermenêutica a base para compreender todas as disciplinas centradas nas artes, comportamento e escrita do homem. Segundo Palmer:
“ Dilthey defendia que a interpretação das expressões essenciais da vida humana, seja ela do dominio das leis, da literatura ou das Sagradas Escrituras, implica um acto de compreensão histórica, uma operação fundamentalmente diferente da qualificação, do domínio científico do mundo natural; porque neste acto de compreensão histórica está em causa um conhecimento pessoal que significa sermos humanos”.
A quinta, a hermenêutica como fenomenologia do Dasein e da compreensão existencial, tem Heidegger como grande autor e sua grande obra ‘Ser e Tempo’ marca uma viragem no desenvolvimento e na definição quer da palavra quer do campo da hermenêutica. Neste contexto, a hermenêutica se refere a explicação fenomenológica da própria existência humana. Assim a hermenêutica é relacionada de um vez só com as dimensões ontológicas da compreensão e concomitantemente com a fenomenologia específica de Heidegger.
Gadamer em ‘Wahrheit und Methode’ se esforça para relacionar a hermeneutica à estética e à filosofia do conhecimento histórico.
A sexta e última, a hermenêutica como um sistema de interpretação: recuperação de sentido “versus” iconoclasmo, apresentada por Ricoeur incorpora ao campo da hermenêutica os “textos” composto por símbolos, que podem ser tanto símbolos literários ou sociais como sonhos ou mitos. “a hermenêutica é o processo de decifração que vai de um conteúdo e de um significados manifestos para significado latente ou escondido. E nesse novo panorama a psicanálise é um fator importantíssimo para essa compreensão. Nesse estudo ele distingue os símbolos em unívocos (signos com sentido único) e equívocos ( signos com múltiplos significados),os últimos são o verdadeiro centro da hermenêutica. Nele a hermeneutica é o sistema pelo qual o significado mais fundo é revelado, para além do conteúdo manifesto. Nesta ultima forma de hermeneutica Ricoeur destaca Freud, Marx e Nietzsche principalmente pelo seu trabalho desmistificador e destruidor da falsa realidade e de todos os seus elementos além de defenderem um novo sistema interpretativo do conteúdo manifesto dos nossos mundos – uma nova hermenêutica. Ricoeur ainda sugere uma filosofia reflexiva que não se refugie em abstrações “nem degenera em simples exercício de dúvida, uma filosofia que aceita o desafio hermenêutico de mitos e símbolos e que tematiza reflexivamente a realidade que está por detrás da linguagem, do mito e do símbolo”.


Bibliografia:
PALMER. Richard E. Hermeneutica – Interpretação Teoria em Schleiermacher, Dilthey, Heidegger & Gadamer.1969. Tradução de Maria Luisa Ribeiro Ferreira. Pág. 15-54.

Escrita pela autora do blog.

2 comentários:

Eu estudo Direito disse...

Parabéns Tatiana, seu blog é uma grande fonte de pesquisa para nós acadêmicos de direito. Abraços

Equipe Über Pró-Blog disse...

Muito bom seu texto!! Parabéns! me ajudou finalmente a entender.

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